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O PATRIMÔNIO: ESPELHO DA IDENTIDADE SOCIAL

Marisa Pinho*


Vivemos numa época em que somos cobrados pelo “dever da memória” e nossas lembranças nos tornam culpados pelo risco do esquecimento. Muitas vezes, tais cobranças nos levam a teatralização sobre o pretexto de conservação patrimonial.


Os moderno pode conviver com o antigo, refletindo-o e valorizando-o.




Quando falamos sobre o assunto de preservar o patrimônio edificado, fugimos ao equilíbrio e bom senso e nos enveredamos por um caminho inócuo cometido pelos excessos. Enfrentamos uma batalha que nos leva a questionar: preservar o quê, para quê e para quem? Sem perder o rumo, sem cair em ciladas de idiossincrasias do poder e da aparência estereotipada de um modo de vida que já se foi. 

Observamos a dicotomia entre os interesses sociais e políticos que se encontram espelhados numa cidade, onde o desenvolvimento urge, a qualidade de vida e as pessoas, devem ser os parâmetros para que essa batalha patrimonial e a visão de progresso, tenham um fim ou uma continuidade positiva.


As edificações não podem ser vistas meramente como baluartes da nostalgia de um passado que nos leva ao ostracismo. 


As novas gerações precisam de um significado para atrelar o passado e o futuro em suas cidades.



Para que o passado não perca seu valor, é preciso dar-lhe um uso atrelado às necessidades do novo, pensando que a junção do passado, presente e futuro, não passem apenas por um simulacro dessa atualização.
A manutenção da ordem simbólica das sociedades modernas tem como o uso da conservação patrimonial atrelado ao objetivo político e social, onde se objetiva mostrar a cultura e sua História contra os riscos de sua desestruturação. 

Os locais, os relatos dos fundadores, os monumentos que estruturam a imagem do patrimônio, podem perder suas características por serem tratados como produtos, na tentativa da comercialização de uma imagem que se quer refletir, dentro de uma gestão fundamentada apenas em simbolismos.

Esses simbolismos, acreditam-se, que asseguram a sua perenidade. Mas, será que a preservação se resume apenas a isso? Trava-se uma luta entre o conservadorismo e os que levantam a bandeira da Inovação atrelada ao progresso, ao espaço para o novo.

Quero aqui lançar algo para sua reflexão... 

O que é revitalizar

Segundo o dicionário significa: "nascer de novo, reviver, tentar novamente de outra forma".

Como você vê e observa essa palavra no conceito de preservação do patrimônio histórico de sua cidade?



Creio que um dos erros que se comete ao tentar preservar algo é dar-lhe a mesma função ou, sem um critério específico, fazer o local de museu



A memória e sua preservação devem fazer parte do valor identitário para as pessoas.

Somos um país carente de centro culturais, concordo, mas não atribuo a preservação de um lugar apenas a algo que só o remeta ao passado. Devemos pensar em um novo uso, algo que a área possua necessidade e que haja para a população uma identificação, um reconhecimento de sua importância atribuído ao lugar.

Identidade, eis a palavra chave. Aquilo que nos traz um significado, um gostar e uma identificação, igualando-nos e tornando um lugar querido, garantindo a sua salvaguarda. 

Em Santos, litoral de São Paulo, a Praça Palmares próxima ao canal 4 é um bom exemplo.
Praça Palmares - Santos - SP




Os jovens skatistas se identificam e preservam o local, assim como o Emissário Submarino e o monumento do Dragão Vermelho de Tomie Ohtake. 

Usado para homenagear os 100 anos da Imigração Japonesa. o monumento possui um valor simbólico e de identidade para os que frequentam o local. A própria artista, certa vez disse que nenhuma das suas obras possuía nome, pois preferia que cada pessoa buscasse sua interpretação. Talvez, a interpretação individual traga o sentido que motiva o lugar ser visto como um cartão-postal para os santistas e seus visitantes. As pessoas se identificam e acabam preservando.
O Dragão Vermelho não é um monumento histórico, mas é um símbolo de 'identidade' escolhido pela população santista. 




É através da identidade e do seu significado para a sociedade, que irão se caracterizar os procedimentos de reconstrução do passado, onde a manutenção da integridade territorial constituirão as identidades culturais. Portanto, é através do sentido identitário que se busca a preservação da memória coletiva, a lógica de sua conservação e, conjuntamente, com a função social e política, o enaltecimento da preservação do bem que não deve desaparecer. 

No entanto, a reivindicação da preservação acaba repetindo modelos de que servirão de moldes para outros lugares. Acaba-se, portanto, perdendo o sentindo nas ações de preservação do patrimônio, pois cada lugar possui seu contexto histórico e o sentido próprio do que se deve ou não preservar. 


As ações que seguem moldes pré-estabelecidos acabam produzindo um efeito de “patrimonialização” onde se  passa a ter uma fabricação de lugares da memória atribuídos aos excessos de forjar uma identidade cultural e histórica sem fundamentos e que acabam se tornando uma petrificação patrimonial, tornando os centros históricos um requisito padronizado para atrair o turismo e sem pensar nas necessidades que evoluem com o crescimento e do desenvolvimento da urbe.
A falta de um uso a vários imóveis no Centro Histórico de Santos, não garantem sua preservação e tornam a área insegura e erma a noite e fins de semana. 



Nesse caso, há a falta de uma discussão aberta com os vários segmentos da sociedade envolvidos e, principalmente, do verdadeiro respeito ao patrimônio, que passa a ser apenas um receptáculo de simbolismos da memória, acarretando o exagero de fazermos de uma cidade 'um museu a céu aberto', onde a vida decorrente inexiste e todo o acompanhamento e desenvolvimento gradual não acontecem dentro do verdadeiro contexto de sua preservação.


Devemos pensar na boa relação entre as tradições e a modernidade, evitando um desenrolar anacrônico dos seus próprios efeitos, no desenvolvimento da vida cultural, seus fatores sociais e históricos, havendo uma maior fluidez no processo como em um mesmo novelo que se desenrola e dá continuidade a vida, suas necessidades e gerando assim, uma melhor qualidade de vida.

Um exemplo, são os antigos armazéns da Rua Amador Bueno em Santos. Outrora, além de armazéns de secos e molhados, abrigaram o Cinema Popular e hoje, o Poupatempo, atendendo e agilizando os serviços públicos para a população. 




Armazéns da Rua Amador Bueno - Sede do Poupatempo de Santos. - SP

Não se deve deixar que um lugar siga a corrente da patrimonialização imposta, pois se dariam pressupostos de um falso exercício da preservação patrimonial das identidades culturais, onde se copia a restauração identitária do lugar, como uma encenação folclórica tão comum em alguns países europeus e já observados em muitas cidades brasileiras, onde os centros históricos passam a se parecer e a enfrentar os mesmos problemas de isolamento e esvaziamento humano.


Tais lugares não oferecem a estrutura viva da cidade, mas um cenário da memória, onde seus laços de continuidade com a realidade atual não possuem vínculo, pelo falso uso dado ao patrimônio.


Essa visão dá uma ilusão ao lugar, onde se acredita que só há vida para os que perseguem os modelos compactos de uma narrativa museográfica, que atrai o turismo de um público interessado por um “espetáculo homogêneo”, onde sua diversidade cultural é inserida em aspectos históricos sociais. Tais interesses, não representam sua população, mas servem como atrativo fictício para visitantes e turistas. Portanto, a preservação desses lugares não estão garantidas.


A preocupação com a preservação traz à mente das pessoas a necessidade de se deixar algo para ser lembrado para a posteridade. Procurando nessas escolhas o que nos refletem a imagem que os outros terão a respeito do lugar e da história de seus habitantes. 

As figuras representadas através dos monumentos e das edificações que simbolizam o contexto histórico e a memória coletiva do lugar, devem assegurar a sua origem, sua transmissão para as próximas gerações, assim como, sua essência e singularidade, promovendo de forma atemporal toda a contemporaneidade e perpetuando sua evolução.


O conceito de atualizar não deve ser mais visto como a morte ao passado, mas a sua renovação ao ganhar um caráter advindo dos novos usos para áreas e edificações do patrimônio.

Outro ponto primordial é que não se pode atribuir à salvaguarda do patrimônio à exclusão social. Os processos de gentrificação* acabam gerando problemas de identidade com a população, ao criar um centro histórico cenográfico, imitando outros centros, em busca de atrativos turísticos, mas no entanto, retirando a vida que iria ajudar a manter e se conservar ao lhe dar novos usos, esses, nem sempre dentro dos interesses financeiros e fora das metas de investimentos dos órgãos de preservação.


Tais exemplificações podem ser vistas nas atuais manifestações que ocorrem por todo país, onde os símbolos mais importantes são depredados, pois para o povo, estão ligados ao poder.


Todas as questões levantadas sobre a ordem patrimonial dada através de simbolismos e lugares da memória a serem preservados, devem se preocupar com a lógica de continuidade histórica, mas que tenha comunicação para as expansões necessárias do futuro, voltando às questões de "o quê se preservar, para quê e para quem".


Nos textos de Espelho das Cidades de Henri-Pierre Jeudi (2005) não se apregoa a destruição do patrimônio, mas se questiona a fabricação de centros históricos para interesses financeiros e de poder, sem quaisquer ligações com a vida humana e sua evolução harmônica com seu meio.
                            O Antigo e o Novo podem fazer juntos, parte da paisagem urbana


O que se pode concluir é que o patrimônio, sua conservação e preservação, devem dar fluidez à cidade. Em seu contexto, devem se preocuparem menos com a estética e mais com a ética. 

Portanto, o reconhecimento e a classificação das arquiteturas efêmeras, as suas formas de urbanização dadas pelas diversas classes, sejam da pobreza à riqueza, possuam uma moral humanitarista e que narre a evolução verdadeira do tempo, sem a maquiagem oferecida à uma imagem de interesses políticos.


A forma politicamente correta dessa gestão urbana é a qualidade de vida como fundamento estético da cidade.


A concepção de que o patrimônio e sua preservação podem ajudar dentro de todos os aspectos inseridos, na continuidade atemporal, sem obstruções, mas com a fluidez que não esvazia seu passado do convívio com seus habitantes e seus novos modos de vida, impostos pelos tempos atuais.


Não se deve enxergar o patrimônio das cidades como intocáveis, mas integrados à modernidade e ao modo de vida, só assim, ele terá seu valor para todos e não apenas para uma minoria que não lhe dá o respeito, mas sim, dele cria e obtém proveitos próprios.


A ideia da qual se quer refletir é que o patrimônio de uma cidade espelhe sempre a vida de seus habitantes e tenha para eles sua importância, para que haja, verdadeiramente, sua preservação por todos.



Gentrificação: é o fenômeno que afeta a uma região ou bairro pelas alterações das dinâmicas do local, como a construção de grandes edifícios e novos pontos comerciais que acarretam numa valorização da região, abalando a população de baixa renda, dificultando sua permanência. 


Fonte: Jeudy, Henri-Pierri, Espelho das Cidades; ed.1, Ed. Casa das Palavras, RJ, 2005. 


* arquiteta urbanista e educadora patrimonial (FAMS)

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